quinta-feira, 18 de março de 2021

Traumas

 Ela juntou o ar abafado de sábado com sua raiva curtida por décadas e saiu para comprar bifes e tomates. Faria assim de qualquer jeito qualquer almoço e quisesse que achasse ruim, sem suco, sem feijão, sem nada mais, porque hoje ela não ia se matar de cozinhar presse povo que não tava nem aí pra mim.


Levou com ela o mais novo, quase arrastando, não ia deixar o pirralho sozinho em casa, essas vizinhas fofoqueiras se metem em tudo, quero ver pagar minhas contas. Os meninos mais velhos sabe-se lá onde, como, com quem e por quê estavam pelo mundo, os santinhos, anjinhos… sempre chegam na hora do almoço e ainda reclamam.


Na feira logo na esquina de casa, achou os tomates bem maduros, e os bifes no açougue ela pediu pra amaciar. Levou junto uma latinha de cana também, que ninguém é de ferro. 


Voltou com as sacolas numa mão e o menino na outra.


Fazia calor, todos com aquela careta horrível de sol, todo mundo muito sério e suado, mas além disso, do sol e do suor e das caras feias estavam muitos ali onde não estavam um segundo antes, no meio do asfalto, ao redor do girador, todo mundo da rua, como que cantando juntinhos naquele burburinho surpreso, lutando sem tanta vontade para ver algo no chão, agachados, deitados, pulando naquele mormaço de carnaval.


Era bem na esquina da casa dela; se ia passar por lá de qualquer jeito ia também dar uma olhada.


Segurou com mais força o menino pelo braço e levantou as sacolas até a altura dos peitos, pra ver se pelo menos a comida escapava das bundas e barrigas alheias. Quanto ao menino, ele sempre poderia tomar outro banho quando chegasse em casa. Quando se esfregava em algum conhecido ia pescando uma ou outra informação. Atropelado. Morto. Cabeça. Coitado. Sangue. O motorista fugiu. O sinal era aberto. Caiu da bicicleta. Não sei quem é. Mora lá em cima.


Assim foi indo sem muita dificuldade, pensando que pelo menos teria uma história pra contar, mas a criança, lá embaixo de todo mundo, começou a perder ar, e não via do mesmo modo: faria de tudo, daí em diante, para não ter que contar nem pra si mesma o que veria. Então alguém foi empurrado, e assim todos fomos empurrados. A mulher caiu no chão. Pisotearam os bifes e os tomates. Ela gritou com alguns, sem ser notada, até cansar, distribuiu uns tapas, e aí sim foi notada, se apoiou no chão e então deu de cara com o morto.


Um ônibus realmente havia esmagado uma cabeça.


Se levantou e pegou as sacolas amassadas, em silêncio. Então se deu conta de que o menino não estava mais ali.


Ele tinha sentido medo, e fugindo voltou para casa. Se escondeu embaixo da cama até que teve muita fome, e saiu e comeu o bife com tomate e o macarrão que tinham deixado ali no chão algumas horas antes. Entre uma mordida e outra não podia deixar de ver o prato e pensar o quanto parecia com resto da cabeça que tinha ficado lá na esquina de sua casa.


sábado, 27 de outubro de 2018

Macarrão

Pode ter sido num dia qualquer, mas se eu fosse chutar diria que tem tudo pra ter sido num sábado. Tudo tinha um ar de sábado, e ela juntou isso com raiva e saiu para comprar bifes e tomates, porque faria assim uns bifes no molho de tomate e macarrão e quem quisesse que achasse ruim, assim mesmo, sem suco, sem feijão, sem mais nada, porque hoje ela não ia se matar de cozinhar praquele povo que não tava nem aí pra ela.

Levou com ela o mais novo, não ia deixar o pirralho sozinho em casa. Talvez nem se preocupasse muito, mas só tem fofoqueira nessa rua e podia ser que ficassem falando. Os mais velhos sabe-se lá onde, como, com quem e por quê estavam pelo mundo, os santinhos; a única certeza que tinham era da mesa cheia, ao meio dia.

Na feira, achou os tomates bem maduros, e os bifes ela pediu pra amaciar, que nem com isso ela queria perder tempo hoje. Levou junto uma latinha de cana também, que ninguém é de ferro. Pagou e foi embora, com as sacolas numa mão e o menino na outra.

Fazia muito calor, estavam todos com a nossa careta terrível de sol, como se fosse todo mundo muito sério e suado, mas apesar do sol e do suor e das caras feias estavam todos ali, no meio do asfalto, uma multidão mesmo, todo mundo da rua, todos falando, bem juntinhos, olhando algo no chão, ou tentando ver algo no chão, naquele mormaço, alguns até mesmo quase deitados, tentando ver entre as pernas dos outros.

Era bem na esquina da casa dela; se ia passar por lá de qualquer jeito ia também dar uma olhada.

Segurou com mais força o menino pelo braço e levantou as sacolas até a altura dos peitos, pra ver se pelo menos a comida escapava das bundas e barrigas alheias. Quanto ao menino, ele sempre poderia tomar outro banho quando chegasse em casa. Quando se esfregava em algum conhecido ia pescando uma ou outra informação. Atropelado. Morto. Cabeça. Coitado. Sangue. O motorista fugiu. O sinal era aberto. Caiu da bicicleta. Não sei quem é. Mora lá em cima.

Assim foi indo sem muita dificuldade, pensando que pelo menos teria uma história pra contar, mas a criança, lá embaixo de todo mundo, começou a perder ar, e não via do mesmo modo: faria de tudo, daí em diante, para não ter que contar nem pra si mesma o que veria. Então alguém foi empurrado, e assim todos fomos empurrados. A mulher caiu no chão. Pisotearam os bifes e os tomates. Ela gritou com alguns, sem ser notada, até cansar, distribuiu uns tapas, e aí sim foi notada, se apoiou no chão e então deu de cara com o morto.

Um ônibus realmente havia esmagado uma cabeça.

Se levantou e pegou as sacolas amassadas, em silêncio. Então se deu conta de que o menino não estava mais ali.

Ele tinha sentido medo, e fugindo voltou para casa. Se escondeu embaixo da cama até que teve muita fome, e saiu e comeu o bife com tomate e o macarrão que tinham deixado ali no chão algumas horas antes. Entre uma mordida e outra via o prato e pensava no resto da cabeça que tinha ficado lá na esquina de casa.

A Política

Porque tinha lido uns dias antes algo sobre serialidade, passava o tempo, naquela tarde, contando cada sapatilha que passava e anotando a lápis, com um traço a cada par numa folha de papel. Não sabia muito bem o que a tinha levado até ali, e não achava estranho. Estava entediada, é certo, mas ela era assim em qualquer lugar – inclusive quase se orgulhava disso. Antes de pensar em contar as sapatilhas ela tentou dormir de propósito, fez palavras cruzadas, escreveu uma carta para si mesma, comeu dois sanduíches com presunto e maionese, jogou pedras no laguinho e roeu as unhas das duas mãos.

Tinha sentado, também de propósito, num banquinho recém pintado de vermelho, e a tinta ainda cheirava. Tinha, assim, a certeza de que ficaria o resto da tarde sozinha. Quando terminou o concurso de cuspe a distância, voltou a contar sapatilhas, até que uma senhora se aproximou e disse qualquer coisa indistinguível do resto do bulício da praça. A velha disse a mesma coisa mais duas vezes, sendo que na quarta foi mais áspera, impaciente, e na quarta chegou ao cúmulo de tocar no ombro da menina, um toque leve e rápido, mas terrivelmente inconveniente, pelo menos pareceu, e então foi possível, para a menina, ouvir o que a senhora dizia, que era sobre se a menina se importava em dividir o banquinho com outra pessoa.

Como se a menina adquirisse então, com aquelas palavras, mas de propósito, uma feição ainda mais azeda e como que o tom da pele tenha passado do rosa para o vermelho intenso, fixando ou transfixando os olhos da velha com uma expressão quase de náusea, a velha estremeceu um pouco, mas permaneceu firme em seu intuito, que era sentar, mesmo resmungando, sentando de uma vez, soltando um muxoxo e depois um longo suspiro. A menina continuava encarando a velha, que devolveu o olhar durante alguns momentos, logo desistindo. A velhinha abriu a bolsa e tirou um pacote de pipocas, já aberto, e começou a alimentar os pombos.

Aquilo pareceu um ultraje para a menina, que ficou como em choque. Água apareceu nas bordas dos seus olhos; cruzou os braços e as pernas, e começou balançar a cabeça negativamente, com os lábios tremendo, e seu rosto de vemelho passou a roxo, depois a azul, provavelmente porque prendia a respiração.

Enquanto isso, os pombos engordavam, e continuariam assim por mais um tempo, não fosse a menina finalmente voltar a respirar e se levantar tão de uma vez como a velha sentou, dando, antes ou durante, um dramático tapa no banquinho – que quase, coitado, se quebrou -, e berrando que aquilo era um absurdo, um desrespeito, quase um crime, vejam só, certas pessoas acham que tem o direito de incomodar os outros sem qualquer pretexto, e num lugar como aquele, onde todos iam buscar paz, um lugar onde relaxam, e aí vinham certas figuras apenas para atrapalhar, para bagunçar, para desestruturar, para desconsiderar, para desconstruir e devastar, e que lazer e privacidade são valores dos mais importantes, e ainda por cima tocam nas pessoas sem a menor cerimônia, e, de arremate, alimentam pássaros que são tão sujos como ratos, trazendo-os com seu barulho cada vez mais perto das pessoas,

e a velha disse que não entendia o motivo de alguém se expressar dessa maneira, com aquelas palavras, porque a moça poderia simplesmente dizer sobre si, e não usar a terceira pessoa para apontar algo que era muito óbvio, isso sim era um desrespeito, ora essa, falar de si mesmo e dos outros como se eles não estivessem presentes, e que a menina parecia ainda mais infantil, e olha que ela não era nenhuma criança – a velha observou -, e que deveria pelo menos ter entendido isso, que poderia se expressar diretamente com outras pessoas, ser sincera etc., mas isso só vem com a maturidade ou alguma merda assim, e a menina disse que o caralho, que não ia cair naquele papo de educação, porque ela tinha sido muito bem educada e que só falava daquela maneira porque parecia que a velha tinha mesmo algum problema na cachola que só a permitia entender poucas coisas, como levantar, comer, beber água e dar comida a ratos com asas, então ela deveria ser o mais didático possível, e a velha perguntou e por que isso, minha querida, isso é uma agressão, e aí ouviu de volta que agressão ela ia ver só se não se levantasse daquele banquinho nos próximos cinco minutos, no que a velha disse Oh!, e segurou mais firme na sua bengala, que tinha ficado do lado direito, encostada no braço do banquinho.

Assim ficaram, e as duas estavam muito resolvidas quanto aos seus respectivos silêncios. Faltando uns trinta segundos para ver se a menina ia cumprir com a coisa de fazer ver o que é uma agressão de verdade – pelo menos a velha tinha entendido assim -, ela disse que simplesmente queria saber o motivo, o motivo de verdade, porque não era com os pombos, nem pelo toque, era outra coisa, e a menina disse que isso era claro, e que agora estava pensando mesmo que a velha não era doida, mas era cega, e apontou pra cima da cabeça da velha, que por um momento teve medo – pensava que era um pegadinha para que a menina a pegasse desprevenida, mas finalmente pode ver, uma placa com o desenho de um gordo, por pareidolia.

A velha fez que não entendeu, o relógio da menina tocou o alarme e BUM ela enfiou uma bolacha na cara da velha, que caiu gemendo na areia mas logo se levantou e rodou a bengala bem na canela da menina, que era fina, levando a pobre coitada ao chão, onde começou imediatamente a vociferar todo o seu vocabulário de palavrões, inclusive alguns que ela mesmo tinha inventado e outros que ela estava criando naquele mesmo momento, e a velha disse que puta que pariu, que exigia explicações a respeito do que estava acontecendo, que iria chamar imediatamente a polícia, e a menina, gemendo, falou que aquilo sim era uma puta velha, que não consegue nem ver quais bancos são reservados para pessoas gordas, coisa que deixou a velha triplamente perplexa, primeiro porque a menina não parecia gorda, segundo que aquilo significava preferencial e não reservado ou exclusivo e depois que ela era uma velha gorda, que podia tanto sentar nos banquinhos dos velhos quanto nos banquinhos dos gordos, e deixou tudo isso muito claro para a menina, à sua maneira, às vezes até insinuando que não seria de todo mal que criassem banquinhos para velhos gordos ou gordos velhos.

A menina se levantou esfregando a canela e se sentou no banquinho, e perguntou como assim eu não sou gorda, e a velha disse que a menina não era gorda, aquilo só podia ser uma brincadeira muito ruim, e a menina se levantou e foi embora pra casa ler menos sobre serialidade.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Rasgo

Em alguns maus dias, ao me encontrar parado, a contragosto, em algum canto desse charco, como num ponto de ônibus ou em qualquer fila, tinha a certeza de que estava, literalmente, no inferno, e que estava ali há nada menos que uma eternidade, parado; sabia, então, que minha memória era completamente ilusória, que meu senso de futuro, meus motivos, meus planos eram ainda mais ilusão: alguns instantes de pesadelo, dos quais não demorava a acordar. Não poucas vezes, ao acordar desses pequenos pesadelos, assaltava-me uma sensação em tudo peculiar, particular desses momentos, a certeza de que algo essencial tinha acabado de escapar por entre meus dedos, por um detalhe ridículo, menor, por causa da falta daquela insignificância anônima, eu tinha deixado de ver, finalmente, depois de tantos anos de espera ou procura, a verdade, olhos nos olhos.
Ainda assim, uma impressão continuava. Não tinha mais certeza, mas tinha fé que, nesses maus dias, estava no inferno. Era assim, quando qualquer menor pedaço do Recife se transformava num vasto e atroz panorama, quando percebia uma distância entre mim e todo o resto, quando sentia o estranhamento de me reconhecer como meu próprio demônio, um diabo pobre que escolheu Recife para habitar, para se infernizar.

Era nisso que eu pensava dentro do táxi, parado na Agamenon alagada. Meu pé quase não doía mais, apenas latejava. Estava assim de novo, distante. Imaginava que quase não era meu pé, era algo como um bicho, um cão. Um pé estranho que gania. Talvez apenas distração, porque há trinta minutos eu não conseguia parar de me sentir a pessoas mais estúpida do mundo. Que tipo de gente tira o sapato pra atravessar uma rua alagada? Você, claro, não vê onde pisa, e aí pode sentir um corte fundo. Uma lata, um caco de vidro, uma faca. Um talho horrível, largo, que abriu o meu pé direito como se ele fosse uma linguiça quente. O sangue se espalhou, e eu pensei, já dentro do táxi, que era mesmo uma imagem horrorosa, o sangue muito vivo, vermelho, muito vermelho, boiando na lama, naquele barro sujo, como se fosse água e gordura, mas havia uma sensação de que não eram tão diferentes um e outro. Aliás, que tipo de monstro dali brotaria, se fosse possível? Que tipo de coisa poderia nascer de uma mistura assim?
Eu tenho medo do meu próprio sangue. Fiquei nauseado; tive vertigens. Eu não sei como cheguei em casa, mas fui direto lavar meu pé, que ainda sangrava muito. Era um corte muito ruim, comprido, tomava quase toda a lateral do pé direito, da base do dedinho até o calcanhar. Lavei da melhor maneira que pude e consegui estancar o sangue com uma toalha. Sentado na privada, eu percebi que não sentia fome, mas tinha uma garrafa de vinho na geladeira. Terminei o dia no sofá, bêbado e ferido. Quando acordei de madrugada, um pouco mais quebrado de dormir no sofá, já chovia, e o pé estava inchado, vermelho, dolorido. Talvez esse frio seja febre. Deveria ter ido ao hospital, ao invés de vir para casa. Chamei um táxi e enquanto esperava, me arrumei como pude, paralisado pela preocupação com o pé. Fiz um curativo tão feio que parecia mais destinado a piorar a situação, mas era o que eu tinha. O táxi chegou e eu desci. Eram umas sete da manhã.
Que burrice, deixar uma ferida besta dessas infeccionar. Talvez, se eu quisesse mesmo que o pé ficasse podre, não teria encontrado uma maneira tão boa de fazê-lo. Nem se quisesse.
Mas acho que o Recife me preparou para isso.
O bairro do Espinheiro me preparou para isso. Agora a gente sabe que o bairro mais sincero do Recife era o Espinheiro. O Espinheiro era a cara e a alma da cidade. Não era São José ou o bairro do Recife, nem Boa Viagem, nem Casa Forte. Era o Espinheiro. Primeiro, porque era um bairro extremamente pequeno. Pequeno e cheio de criaturas ocas. Pequeno, ambicioso, mesquinho, desonesto. Pegava, de uma dúzia de bairros fronteiriços, sempre uns metros a mais. Santo Amaro, Boa Vista, Graças, Rosarinho, Encruzilhada, Torreão. As famílias decadentes, incestuosas, brancas. O almoço de domingo. É preciso manter a dignidade a qualquer preço, diziam assim mesmo, sem perceber o pecado, sem intenção irônica. Ser preconceituoso, mas não muito. Nunca lavar a louça. Ser um pouco cego, moralmente flexível. Empregadas domésticas, sim, mas trombadinha e cheira-cola só da Encruzilhada para lá, aqui não tem disso, não, aqui tem gente boa, de família. Cidadão de bem. Era o que todo mundo se dizia, mas eu acho que não dormiam bem à noite.
Você vê, ali onde era a esquina da Quarenta e Oito com a rua do Espinheiro, não tem um prédio marrom claro? Bege? Lá, um dia colocaram uma placa, cobrando do prefeito a solução pros alagamentos constantes daquela esquina. Ainda assim, uma moça, um dia, moradora do mesmo prédio, resumiu tudo muito bem: moradora daquele prédio, ela me confessou, sim, confessou, com uma culpa tão sincera quanto hilária, que no Espinheiro nenhuma rua inundava. Quando eu tive que dizer para ela que ela estava completamente enganada, ela resistiu com tanta convicção, que por uns instantes, eu pensei que quem estava enganado era eu. Eu não insisti e nunca mais a vi, mas não duvido que até hoje o bairro dela ainda não inunde. Mesmo depois do que aconteceu. Talvez, talvez ela ainda more lá, e esteja esperando a empregada chegar para descongelar a lasanha. Isso tudo, e esse pessoal só precisava andar cem metros para qualquer lado para encontrar uma favela, um córrego, um canal. Apenas cem metros, e descobririam Recife. Precisavam apenas sair num dia de chuva.
Na chuva, Recife sai do armário.
É o que eu digo: a geografia daquele bairro me salvou. Me disse umas verdades. Por exemplo: a chuva em Recife é a instituição mais democrática da cidade. Não importa quanto você tenha, você vai se foder. Claro, pobre se fodia o dobro, mas minha rua, por exemplo, ficava intransitável. Não era perder móvel, perder cachorro, perder a casa, perder a vida. Mas ninguém andava. E também não precisava de nenhuma tempestade não, nem de explodir barragem nenhuma, qualquer chuvinha bastava. Qualquer chuviscar e a rua fica cheia da merda daquelas velhas brancas. E então, eu via da janela do meu quarto aquele povo tão católico perder a hora da missa. Não podiam arriscar, aquele pessoal tão religioso, não podia arriscar pegar leptospirose, ou tétano, ou vermes, nem para salvar a própria alma. Eu ria de suas pequenas desgraças, e quando a chuva passava, eu ainda mantinha um pouco de revolução em mim. E eu perseguia, com um pouquinho de querer poder, as pessoas desesperadas naquelas ruas recém-inundadas, enlameadas. Era isso que eu gozava. Eu perseguia seu tédio, sua ignorância, seus preconceitos de fila do supermercado. Eu os olhava e estavam nus, porque eu sabia que aquela lama, aquele lodo nos sapatos de veludo, é a mesma lama e o mesmo lodo que afogaram e mataram Zefa ou Ciça ou Carminha na Linha do Tiro ou na Campina do Barreto. Exatamente o mesmo tipo de lama. Olhava-os bem nos olhos e deixava que soubessem que eu sabia. Deixava que soubessem que eu sabia que também chafurdavam na lama, embora negassem, até com alguma sinceridade - não duvido disso -, que o Espinheiro tenha algum, apenas um ponto de alagamento. Apenas isso. Funcionou durante um tempo. A chuva me fez sobreviver àquele bairro da mesma maneira que me ajudou a sobreviver em Recife. É isso que acontece. A chuva faz Recife sair do armário.
Quando chove, não é apenas um problema por vez, como primeiro o calor, depois o trânsito, depois a gente mal-educada, depois o preço desonesto, ou a música ruim. É tudo de uma vez. É a minha convicção de que todo infeliz que mora nessa cidade deveria pensar de vez em quando: quando chove, Recife rasteja desde seus menores buracos até nós, e de repente, cai sobre nós, completa e nua, como uma mulher de más intenções. E não podemos suportar olhar para ela. Mas, sem a chuva, é como se todo esse povo estivesse traumatizado. Fingem que vivem em algum grande centro do mundo, usam grandes palavras, grandes marcas, bebem grandes vinhos, andam em grandes carros, fazem grandes compras, acham que têm grandes empregos.
- É a única coisa que o Espinheiro faz: alaga, eu disse, com algum enfado. - Praticamente todas as ruas tem um ou dois pontos de alagamento, quando não ficam alagadas de cabo a rabo!
- Pois eu moro há cinco anos no Espinheiro, meu querido, e nunca vi nenhuma rua alagada.
Meu querido.
Também sentia medo do hospital, não gosto de hospital. Não gosto de hospital, de escola ou de delegacia. Aguento até igreja, como aguento o terreiro, mas hospital, não. Eu estava muito puto, e o taxista não parava de falar. Foi aí que eu percebi que o Recife não me salvou porra nenhuma. Só me ensinou preconceito e resignação cínica. Chovia muito, eu me lembro, e a Agamenon, na altura da Restauração, estava inundada. O canal transbordou. O taxista começou a falar que estava com medo que entrasse água no táxi, porque o táxi era novinho e começou a resmungar coisa como se não devia mesmo ter recusado a corrida, porque bem que lhe tinham avisado, a Agamenon tá cheia d’água, rapaz, mas como se ele não soubesse que estava tão ruim, aceitou mesmo assim. E então, estava tudo parado e começou de novo, com o mesmo zumbido de sempre. A certeza. Ali estava, eu via o véu. Era pastoso. Então, mais uma vez, tive a certeza: eu estava no inferno. E isso me libertou, não Recife. Eu sabia que estava no inferno, isto é, sabia que tinha morrido. Trinta e cinco anos de Recife mata qualquer alma. E a minha estava perdida. Eu, literalmente, tinha a certeza que estava no inferno. Então paguei, rindo, como se fosse mesmo uma piada, paguei a viagem e desci. Fui andando até o Português, o hospital. Tirei a blusa e a camisa. Tirei os sapatos. Não sentia nada, a não ser um pouco de frio. Eu podia tudo. Claro, o pé incomodava, e era só por isso que eu ia até o hospital. Queria um pé novo, para aproveitar tudo com tudo. Cheguei rindo ao hospital. E então, senti um pouco de medo, aquela coisa toda branca, o ar-condicionado, o cheiro de álcool, de éter. Senti medo de que não estivesse, finalmente, no inferno. Mas eu só fazia esperar, parado no charco, uma pulseira amarela no braço, me lembrando que era tudo uma piada.
Finalmente me chamaram. Não doeu quando limparam, muito pelo contrário, eu senti um prazer, como às vezes sinto quando me coço, um comichão bom, rasparam tudo, lavaram com água, com aroeira, com babosa, sei lá, depois cobriram com uma malha fina e fiquei um dia inteiro deitado, pensando no que significa ser uma coisa bruta. Brutal. Estado bruto. Brutalidade. Ser uma pedra. Sem conhecer, sem saber, sem olhar. Permanecer, ao invés de sobreviver. Pensei também como é bonito um homem como eu, bem acabado, fruto da civilização, educado, talvez até demais, pasteurizado, uniforme, asseado. E quanto vale ser uma coisa e outra, ser bruto ou ser asseado. A diferença que faz um livro ou um pente, ou ter mãos de assassino, pés prontos para pisar. E que tipo de criatura se adaptaria melhor a Recife. Adaptar-se. Nunca fui uma criatura flexível. Sempre fui uma criatura bruta. Do alto de toda minha civilidade, educação, boa-vontade, sempre se escondeu uma certa potência para a brutalidade. Isso não está certo na época que vivemos. Querem que você se envergue e não parta. Antes, pelo menos aceitavam que você se submetesse; agora, tiraram até isto de você. Não chore, não sinta raiva, não odeie, não ame demais. Não admita, não se confesse.
Mas agora, estou livre.
Estou mal, bastante mal, mas estou livre. Uma faca incógnita rasgou meu pé, mas estou livre. Assim eu pensava. Uma faca anônima furou meu pé direito, furou até os ossos, separou os nervos, os tendões, mas estou livre. Uma faca rasgou meu pé e eu tenho febre, me cortaram mais um pouco, depois me costuraram, me deram comprimidos, injeções, conselhos, tudo isso a cru, mas estou livre. Do que estou livre?
Agora, todos os dias são maus dias. No inferno, aqui, a gente vive e sobrevive de restos. Restos bastam. Não só restos de comida, mas restos de afeto, de memória, de dentes, de vida, de livros, todos os dias estou no inferno, como os restos. E não é tão ruim. Pelo menos ainda tenho os dois pés.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ela

Mesmo que por aqueles dias eu pensasse nela o tempo inteiro, achei tanta coincidência vê-la que até tropecei ao subir na calçada, demorando um pouco para organizar as ideias – tempo perdido, percebo, agora que estou distante - e assim “saber” que ela era ela - saber assim entre aspas porque não tinha, aliás, como saber se ela era ela de verdade, só intuía -, eu balançando embaixo de demasiados sóis de Recife iluminando através de uma absurda lupa ali o pequeno abismo precipício que ia da calçada à sarjeta, eu num estado que não tenho como definir muito bem, talvez num “estreitamento da consciência”, talvez como perdido numa contração acidental do tempo e do espaço, ou talvez como quando nos queimamos, como quando como só depois de uns momentos sabemos o que fazer quando nos queimamos - ou vimos na tevê ou alguém nos disse ou aprendemos por conta própria, não importa, dói tanto que por alguns momentos apenas “sabemos”, sabemos entre aspas o que fazer, sabemos algo que é quase a mesma coisa que não saber, sendo, ainda, um saber diferente, “sabemos” que é pra colocar água ou água gelada ou água morna ou água quente ou água sanitária ou álcool, ou podemos “saber” que é pra danar manteiga ou pasta de dente ou cuspe ou babosa ou terra na queimadura, ou pode ser a primeira queimadura, a primeira inocente queimadura, e daí não é difícil entender de onde saímos com tantos dragões e hidras e sarças e espadas ardentes, em qualquer um desses casos é tudo inútil e dói demais, dói tanto que só podemos saber, saber sem aspas, do estímulo, única e exclusivamente do estímulo -, é aí depois desses momentos de dúvida que finalmente acordamos, por assim dizer, com aquele barulho no jardim, prendemos a respiração esperando, ao mesmo tempo, ouvir algo e ouvir nada, finalmente acordamos com aquele grito que não sabemos se foi um grito ou um curtíssimo pesadelo, concentramos tanta atenção no estímulo - mesmo sem saber, sem aspas, se o estímulo existe ou não - que tornamos impossível, naquele momento, sabermos de outra coisa a não ser a dor, é por isso que a dor funciona, não que eu tenha sentido dor, mas vê-la me proporcionou sensação parecida, porque eu ”sabia" que ela era ela quando a vi de relance, e senti o cheiro característico de alma pegando fogo, então fiquei ali parado por um momento, um pouco sem saber que ela era ela, sem saber o que colocar na ferida – só sabia que não era pasta de dentes nem manteiga -, e quando eu soube de verdade e afinal que o que fazer, quando o choque da queimadura já tinha passado e só havia bolha e ardor, o sinal abriu e veio toda aquela torrente de carros, parecia um racha de ônibus, caminhões, carros, bicicletas e trens, eu não podia mais atravessar a rua e falar com ela, que era o que sabia que tinha que colocar na queimadura, eu agora tinha que gritar para ela, o que suscitou um problema gravíssimo, levando em conta o pouco de tempo que eu tinha - ela já ia virando a esquina -, e o problema gravíssimo era decidir se era melhor gritar o nome ou o apelido, o que agora, com todo o tempo do mundo, parece simples, mas não ali hora, no tic e no tac, tinha muita gente na rua, e eu pensava que talvez fosse melhor ser mais específico e gritar o apelido, para não causar mal-entendidos, vai que eu gritava o nome e ela não ouvia, e eu iria ficar ali, com todas as Marias da redondeza olhando pra mim, exceto ela, que iria dobrar a esquina e eu nunca mais na minha vida teria certeza, ao mesmo tempo que eu pensava que ela poderia pensar que eu pensasse que eu já era muito íntimo dela, e nem era um apelido muito bom também, enfim, o que aconteceu mesmo foi que em milésimos de um segundoeu já estava suando, tremendo, sentindo calafrios, vertigens, dores nas articulações, meus olhos se encheram de lágrimas e então ela deu mais um passo, tudo ficou escuro, acho que ouvi um trovão, e aí acabei gritando de susto, e acabou saindo o apelido mesmo, saiu um “Mamá” bem alto, mas foi como se eu tivesse espirrado, e aí a minha consciência, que já não estava essas coisas todas, ficou estreita de uma vez, mas o tempo se dilatou, e o resultado foi um Mamá largo e lento, esticado e mole, solto, desarticulado, porém muito alto, um som ruim, como um arroto num microfone, e isso não era o pior, o pior era que ela deu mais um passo e não dava mostras de olhar para trás, e eu só podia esperar, foi assim que pensei, para me consolar eu pensei que se ela não olhava para trás não era por não ter ouvido em definitivo, mas por não ter ouvido ainda, porque se o som anda apenas algumas poucas medidas de espaço por algumas outras medidas de tempo, era então apenas uma questão de tempo, e, mesmo se naquele lodo sonoro do meu arroto ela não reconhecesse seu nome, em algum momento ela iria olhar para trás, nem que fosse por susto, ela iria olhar pra trás assim que ouvisse, era essa a minha esperança, a esperança de sempre e de todo mundo, esperança que reside em saber que tudo o que o tempo faz é passar e tudo o que fazemos é esperar, ela me ouviria, e aí eu poderia pular e balançar os braços, ela me veria, e eu daria um jeito de explicar aquela bolha de saliva que tinha saído dentre meus dentes, seria apenas uma questão de tempo, ela me entenderia, então eu esperei, e na espera me entreguei à lembrança do dia em que a conheci, lembrei do seu vestido branco, e lembrei do céu aberto, e lembrei do mar, e tudo ficou bem, até fiquei menos pálido e abri um sorriso, tudo por uma lembrança que eu na verdade eu não tinha, porque quando eu a conheci ela estava de bermuda e camisa, e chovia, e estámos num apertamento apertado do centro, às cinco da tarde de uma quinta-feira, mas fiquei pensando no mar e no céu até que borracha e buzina me acordaram aos gritos, e senti o calor do motor da 4x4 bem do meu lado direito, eu tinha andado para o meio da avenida sem perceber, e o motorista muito sutilmente me mandou tomar no cu, me chamou de bicha e perguntou se eu queria morrer, grande pergunta que até agora não tive como responder, e a partir daí o tempo começou a passar mais depressa, meu uivo começou a lutar com o ar espesso demais, e não estava levando a melhor, meu grito ia sendo mutilado em cada quina de cada brisa, meu verso abjeto ia ficando com menos vogais, seu sangue estava nos pneus cantando, nos facões batendo nos cocos, naquela risada descompensada e áspera que jamais esquecerei, na lata de refrigerante caindo, no meu coração, na criança que chorava, no cachorro que latia, todo o bulício de todo o mundo, e sangrava ainda mais nos passos dela, cada passo era uma taça caindo no chão, umas taças bem caras, umas taças gigantes, e dali a pouco seriam pratos, castiçais, lustres, janelas, muros, tetos e edifícios de cristal, meu grito morreria nos cacos, e ninguém me ouviria, e eu iria ficar ali a sós com meu grito mutilado, e eu iria ficar ali sozinho cada vez mais eu, as pessoas me veriam de boca aberta, e fariam cara de espanto ou nojo ao ouvir aquela obscenidade sônica saindo um rosto pálido, suado, de olhos esbugalhados, mas ninguém veria o que eu tinha visto, ninguém saberia dos meus motivos, ninguém gritaria como eu gritei, jamais gritariam, apenas me ouviriam, exceto ela, que no mínimo fingia que aquele soluço idiota não era com ela, todos ouviam meu pigarro gigante, exceto ela, ela não ouvia só de raiva, e meu grito ia se quebrando, se cortando, se desfazendo, olhei pro grande sábio da 4x4 e soube que iria morrer, mas resisti, para dar sentido ao dia, à crueldade mínima do dia - o dia em slow motion, o dia 360º, o dia 3d, o dia raios-x, o saldo disponível do dia, as 8 horas de trabalho do dia, a hora de almoço do dia, os lenços úmidos e os apertos de mão do dia, o fim do mundo do dia, vocês, eles e nós do dia, os adeuses, olás e acolás do dia, as pontes do dia, eu esperei, eu resisti, e então olhei de volta para a esquina e ela já tinha virado fumaça ou tinha sido abduzida por extraterrestres ou tinha se metamorfoseado naquela velhinha que olhava assustada para mim, e o que eu pude fazer foi voltar para a calçada sem morrer, sem ouvir os restos das buzinas e os xingamentos dos motoristas praquela figura pálida, magra e suada, que subia a calçada lenta e finalmente, com os olhos fundos e com as mãos trêmulas, aquela figura que afinal sabia o que fazer, que era pensar que ela talvez não fosse ela.
 
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